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São Kardec, Kardec são

novembro 15, 2014

marcus-bragaO nosso atavismo nos faz reinventar práticas que arrastamos de outras gerações (e reencarnações) nas atuações recentes, fazendo arremedos de mudanças de paradigmas. Assim, vemos na água fluidificada a água benta, no passe a comunhão e na palestra a missa. Importamos práticas, enxergando nos amigos espirituais responsáveis por departamentos e missões a figura dos padroeiros, que tem seus templos a velar sobre causas humanas. Natural, humano, mas merece a nossa atenção…

Essa importação de paradigmas, desde o povo eleito dos judeus até as festas pagãs do império romano, influenciaram a construção do que hoje é a igreja católica e que pelas suas ideias influenciam a nós, espíritas, no país de maior população católica do mundo, com mais de 500 anos de hóstias e castiçais, escolas e conventos.

Em 1996, por questões profissionais visitei Paris, e o também famoso cemitério do “Père-Lachaise”, onde estão sepultadas várias personalidades, como Jim Morrison, Oscar Wilde, Honoré de Balzac e o nosso insigne codificador, Allan Kardec. Causou-me muito espanto na visita a relação das pessoas com aquele túmulo, com a imposição de mãos, colocando flores, em manifestações similares as que ocorrem frequentemente na estátua de Chico Xavier no cemitério São João Batista, em Uberaba (MG).

Esse demorado preâmbulo nos serviu para falar que essa postura se espraia na nossa relação com as figuras marcantes do movimento espírita. Santos sobre a Terra são vistos nos famosos médiuns e oradores da causa espírita, com direito a fotos e estátuas, na prática que herdamos dos antepassados. Nesse sentido, o nosso codificador que combatia os rituais não escapa dessas questões.

Ouvimos nas palestras e na escola de evangelização que o espiritismo não tem sacerdotes, chefes, profetas ou fundadores. Ouvimos falar de uma expressão pouco usual, a existência de um “codificador”, ou seja, um tradutor de verdades espirituais para nós, encarnados. Difícil aceitar esse conceito, sem nos deixar arrastar pelos modelos proféticos e faraônicos de outras denominações religiosas.

O ato de codificar, pressupõe uma revelação acabada, pronta. Ora, estamos bem distantes nesse gigante universo de falar de coisas acabadas, em mais uma importação das doutrinas da imagem e a semelhança do criador, no nosso já conhecido “Terra-centrismo”, combatido por Galileu e que quase o levou a pira incendiária.

No Evangelho Segundo o Espiritismo, o seu capítulo primeiro traz o próprio Kardec indicando que “O Espiritismo é a terceira revelação da lei de Deus, mas não tem a personificá-la nenhuma individualidade, porque é fruto do ensino dado, não por um homem, sim pelos Espíritos”, dando a essa doutrina um caráter diferente de outras religiões, por envolver um dinamismo das fontes múltiplas, e ainda, a possibilidade de apreensão individual, pela valorização da razão.

Entretanto, qual seria o papel de Kardec nesse processo? Um reunidor de mensagens? Um organizador de ideias? A exceção do Livro dos Espíritos, nos demais livros da codificação predominam as análises de Kardec, ainda que subsidiadas profundamente pelas informações dos espíritos. Mas, aparecem ali naquelas linhas a reflexão do pensador, não como um profeta, mas como estudioso que trouxe a discussão racional que respaldou e esclareceu aquela gama de informações.

Bem, aventuro-me a dizer que Kardec, dentro de seu potencial intelectual, organizou conhecimentos que vinham de heranças históricas, dos saberes gregos e do evangelho cristão, e agregou-os a modelos trazidos pelos espíritos, que não se constituíam em linhas gerais ideias inéditas nem no ocidente, nem na história da humanidade. Essa visão da existência, de Deus e do homem encarnado, Kardec reuniu em uma obra que se compõe dos livros principais e de diversos artigos publicados na Revista Espírita, onde ele registrou o fruto de seus incansáveis estudos e pesquisas, na análise de comunicações a luz da razão.

Isso diminuiu a grandeza do espiritismo? Claro que não! A força do espiritismo está nos seus fundamentos e não nos seus fundadores. Como Kardec, outros vieram a contribuir com a sua história na construção do que é, ou do que está sendo, o espiritismo. Alguns desconhecidos, outros mais proeminentes. Todos, inclusive você que me lê, contribuímos para o progresso da doutrina. Esse aspecto colaborativo, bem verdade baseado em pilares, é que traz força a doutrina que busca aliar ciência, filosofia e religião.

Arrepia-me ver pessoas nas casas espíritas tratando trechos das obras de Kardec como interpretações literais e imutáveis, na linha da “Palavra de Deus”, do texto sagrado, esquecendo-se das traduções, revisões e interpretações, na importação de mais um modelo atávico. Oscilamos entre relegar a ele um papel de “Bibliotecário” dos espíritas ao outro extremo de um santo encarnado, um profeta do espiritismo, na deificação que herdamos do catolicismo, que por sua vez a traz de outros povos, com a sua relação imbricada de política e religião.

Todos esses personalismos nos afastam da discussão principal, que é a contribuição que esse pedagogo francês trouxe a questão do espiritualismo moderno e até para a prática religiosa, apresentando uma nova forma de ethos religioso, onde se estuda e se discute, mas também se crê. Essa é a grande quebra de paradigma que insistimos em negar. A construção de uma religião que nos convida a reflexão, mas também a renovação pela vivência no mundo. Uma filosofia que nos apresenta a questão da vida após a morte em um contexto global, reforçada por aspectos científicos que nos dão alicerces sobre essas conclusões.

Vejo as pessoas falarem que hoje em dia o espiritismo é muito religioso, e pouco científico. Gostaria de gentilmente discordar destas… A nossa pratica espírita recente tem sido rasa. Discutimos identidade de comunicações, filigranas polêmicas, a magnitude de eventos, a última notícia a luz do espiritismo, mas esquecemos do maior legado de Kardec, o estudo e a reflexão, na descoberta, sem separar teoria de prática. Lemos pouco, esquecemos a prática do bem, perdemos a curiosidade com a questão mediúnica. Nos perdemos em um emaranhado de discussões inúteis e perdemos o foco de Kardec, que apontava em seus estudos, a luz dos ensinos dos espíritos, uma visão maior da vida.

Saudemos Kardec de forma saudável, respeitando seu legado, como estudioso disciplinado e brilhante que ele foi, que contribuiu com um método, é bem verdade, mas também com valorosas sínteses sobre os ensinos dos espíritos, formalizados em um corpo doutrinário coerente e aberto ao dinamismo da vida. Com Kardec, o espiritualismo saiu das tendas de adivinhação e ganhou um sentido prático, na filosofia, na ciência e na religião.

E assim segue o espiritismo, progressista e progredindo, procurando superar os modelos igrejistas em um paradigma associativista, construtivista, colaborativo, onde cada um de nós pode contribuir para um espiritismo melhor, que não se encerra em palavras e livros, e sim na vivência cotidiana de cada um frente aos desafios da encarnação terrestre.

Marcus Braga

Marcus Vinicius de Azevedo Braga
Marcus Vinicius de Azevedo Braga

Residindo atualmente na cidade do Rio de Janeiro, espírita desde 1990, atua no movimento espírita na evangelização infantil, sendo também expositor. É colaborador assíduo do jornal Correio Espírita (RJ) e da revista eletrônica O Consolador (Paraná). É autor do livro Alegria de Servir (2001), publicado pela Federação Espírita Brasileira (FEB) e do Livro "Você sabe quem viu Jesus nascer" (2013), editado pela Editora Virtual O Consolador.

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