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Jean Pierre, o rapaz das moedas de ouro

maio 21, 2015

abel-sidney“Somente o homem que escreveu tais linhas pode me ajudar. Vou encontrá-lo”, pensou o pobre rapaz.

O inverno daquele ano fora um dos piores que se tivera notícia. Os parques da cidade deixavam à mostra as árvores sombriamente cobertas de neve. Os parisienses encolhiam-se, recolhendo-se mais cedo. As lareiras crepitavam, quando bem alimentadas pelo carvão, escasso e caro. As revoluções que varriam a Europa há décadas ainda não haviam conseguido atender os trabalhadores mais pobres das periferias de Paris, nas suas necessidades mais básicas. O ar intelectual que se respirava deixava ver que profundas transformações aconteciam; as descobertas e as invenções se sucediam; livros eram editados, quadros expostos; a vida cultural nos teatros e nos salões eram de raro esplendor. No entanto, havia fome. E frio. E outras comezinhas necessidades humanas.

O pobre Jean Pierre vagava na noite pouco iluminada e fria. O ano: 1865. Inverno. Mês de dezembro. Ele carregava um livro nas mãos – “L’Évangile selon le Spiritisme”. Descobrira o endereço do autor, no centro da cidade e para lá se encaminhava em tão alta hora. Localizada a moradia do professor Rivail, conforme lhe informou um guarda, bateu-lhe à porta. Trêmulo de frio e fome, não teve forças para dizer nada. Desmaiou. O livro lhe cairia das mãos e Kardec ao pegá-lo leria o que ele próprio escrevera, destacado em lápis vermelho pelo seu estranho leitor e visitante noturno:

Nas grandes calamidades, a caridade se comove e vêem-se os rasgos de generosidade para reparar os desastres, mas ao lado dessas desgraças coletivas, há milhares de desgraças particulares que passam despercebidas, de pessoas que jazem sobre um leito miserável, sem uma queixa. São os infortúnios discretos e ocultos, que a verdadeira generosidade sabe descobrir sem esperar que venham pedir auxílio.

O professor acolheu-o em sua casa, onde dormiria aquela noite. Alimentou-o, deu-lhe roupas de frio e conversaram longamente sobre o trecho em destaque, que tanto o sensibilizara. Ao despedirem-se, entregou-lhe uma carta de recomendação, lavrada de próprio punho, para que pudesse mais facilmente arrumar um emprego.

Jean Pierre não andara muito e percebeu que num dos bolsos do grande casaco que ganhara tinha algo que não percebera: duas moedas de ouro. Como tinham ido parar ali? Vestira o casaco ainda dentro da casa e nada notara. Que mãos ligeiras teriam colocado aquelas moedas naquele bolso?

Voltou à casa do professor, pois aquelas moedas não lhe pertenciam. Muito embora elas pudessem lhe garantir o sustento por quase um mês… Kardec atendeu-o de boa vontade e perguntou-lhe o que o trazia de volta tão rapidamente.  Jean Pierre mostrou-lhe as moedas. ‘Deixe-me vê-las’, pediu o mestre lionês.

– Não são minhas não, meu caro rapaz! Tens mesmo certeza de que estavam no casaco?

Jean Pierre o olhou admirado e indagou para si mesmo: “Então terá sido um milagre?”. Lembrou, então do rigor com que o professor tratava toda e qualquer questão e desconversou:

– Bem, se não são suas e o casaco me foi dado, é natural que eu me aposse delas, pois fará parte do casaco, que agora me pertence, não é?

Houve concordância mútua, depois do raciocínio cartesiano do rapaz, que lá se foi com suas moedas de ouro, feliz da vida.

Alguns anos mais tarde, numa das reuniões da Sociedade Espírita de Paris, Kardec lê a mensagem de um Espírito que assinou Jean Pierre, o rapaz das moedas de ouro. Ei-la, na íntegra:

“Meus amigos, Deus vos abençoe. Um dia, há pouco mais de dois anos, encontrei um homem verdadeiramente caridoso. E discreto. Generoso, deu-me duas moedas de ouro. Ensinara-me, através do que escrevera anos antes, que devíamos buscar as misérias ocultas e socorrer suas vítimas. Assim fiz. Multipliquei as moedas de ouro, primeiro trocando-as em moedas menores e depois empregando-as em um bom negócio, o que as quintuplicou. Trocava-as, distribuía parte delas a quem muito necessitava e a outra parte investia de novo nos negócios. Em pouco tempo fiz pequena fortuna e tanto mais as doava, mais elas se multiplicavam. Embora todo o meu cuidado em não me revelar, um dia fui descoberto, pois não tinha as mãos tão ligeiras quanto a daquele homem generoso. Empreguei, então, abertamente todo o meu capital numa pequena indústria e empreguei muitas pessoas. Quando a morte me acolheu em seus braços, muitos corações me choraram a ausência. Eu, por graça divina, pude continuar aqui o trabalho iniciado. Sempre que posso, saio por aí, buscando inspirar as pessoas para que elas não se esqueçam das misérias que se ocultam tão próximas de seus olhos. Basta ter olhos de ver, como ensinou o Mestre… Não se esqueçam de multiplicar os tantos talentos que a vida vos concedeu.” Jean Pierre

Não consta nenhuma referência ao fato, nas várias biografias que se escreveu sobre Kardec. Nem mesmo se sabe se ele revelou ser aquele homem generoso e discreto que doara as moedas de ouro àquele rapaz. Possivelmente não, pois se revelasse o feito, deixaria de ser discreto, embora continuasse generoso. Como a verdadeira generosidade anda a braços dados com a discrição, ele, certamente, calou-se.

Como descobriram o caso das moedas de ouro é outra história, muito longa que convém deixar para outra oportunidade. Ou mesmo ocultar…

Abel Sidney

Nota do editor:
Imagem em destaque <http://en.wikipedia.org/wiki/Paris_during_the_Second_Empire>. Acesso em: 20MAI2015.

Abel Sidney
Abel Sidney

Formado em Ciências Sociais e Administração de Empresas, por longos anos trabalhou como professor. Desenvolveu, em paralelo, um programa de incentivo à leitura e escrita e, em razão disso, tornou-se também editor. Participa do movimento espírita em Porto Velho - RO.

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