Ingratidão

Márcio Costa
07/10/2024
637 visualizações

Já era final de noite e todos estavam prestes a ir dormir, quando Dorinha, a filha mais velha da casa, adentrou pela porta da sala sem falar com ninguém.

Seguiu direto à cozinha, abriu a porta da geladeira, olhou de cima abaixo e bateu a mesma com toda a força, dando um suspiro de insatisfação.

A despensa ficava ao lado. Da mesma forma, abriu a porta com força, mal olhou o conteúdo e, novamente, bateu com força para fechar o armário.

Bufando de irritação, foi até a sala e, em tom áspero e alto, disse à mãe:

– Estou com fome! Não tem nada nesta casa!

A anciã já havia trabalhado o dia inteiro. Seus olhos estavam ofuscados e a mão já não segurava com vigor as agulhas de crochê. Mesmo assim, com paciência, voltou-se para a filha e lhe disse:

– Minha filha, por que tamanha agitação? A comida está pronta na prateleira de cima da geladeira. Basta esquentar e se servir. Caso não queira, ainda há alguns biscoitos e pães que consegui comprar. Estão ao lado da despensa.

– Sempre a mesma coisa… – respondeu novamente de maneira arrogante e virou as costas para a mãe.

A mãe estava cansada e meio adoecida pelo excesso de trabalho. A par das dificuldades da família, sabia das dificuldades da família e lutava, junto com o esposo, para tentar manter as necessidades básicas do lar.

– Onde você estava, minha filha? – perguntou a mãe, ao sentir o cheiro de bebida e cigarro se espalhando na cozinha.

– Não vou te falar. – Mais uma vez, refutou a jovem de forma grosseira.

– Você precisa mudar de vida, minha filha. – Tentou aconselhar a mãe e continuou.

– Essa condição não vai lhe levar a lugar nenhum. Você nunca mais participou de nenhuma atividade religiosa. Está afastada de Deus.

– De que você está falando, véi?! Lá vem você de novo. Vocês não fazem nada por mim e depois vêm com esse discurso de sempre.

Ouvindo aquelas palavras que entristeciam seu coração, a mãe insistiu mais um pouco, sem êxito. Em seguida, retornou à sala, tentando driblar o cansaço e continuar provendo a família com o seu trabalho. No entanto, no silêncio do sofá, mergulhou em pensamentos e orações em favor da filha ingrata.

*     *     *

A ingratidão é filha do egoísmo e o egoísta topará mais tarde com corações insensíveis, como o seu próprio o foi, assim respondem os Espíritos à Allan Kardec em O Livro dos Espíritos. [1, No. 937]

O ingrato é o algoz de hoje o qual, com suas atitudes egoístas, fere outros irmãos e contrai débitos indesejáveis para si mesmo, muitas vezes sem se dar conta.

No entanto, se hoje passamos por tais situações, é possível que em vidas anteriores também tenhamos ocupado a posição de algoz, expiando agora aquilo que nós mesmo plantamos.

Para toda encarnação, há um planejamento prévio conduzido pela espiritualidade, que cuida de nós. Exercitando o seu livre-arbítrio, o espírito escolhe o gênero das provações que considera adequadas ao seu adiantamento. Nesse contexto, muitas vezes pede para reencarnar junto a irmãos a quem feriu no passado, precisando resgatar seus débitos junto a eles. [1, No. 259]

Por outro lado, nenhum espírito reencarna com o propósito de ser ingrato, desonesto, suicida, ou adotar outras atitudes degradantes. Entretanto, durante o processo de planejamento reencarnatório, que visa o progresso, acaba sucumbindo aos apelos carnais do orgulho, da vaidade e do egoísmo, causando sofrimento e tornando-se uma ferramenta de expiação para terceiros. [1, No. 470]

Também podemos também vivenciar a ingratidão por meio de uma missão assumida. Espíritos devotados ao nosso progresso, como familiares e amigos de outras vidas, podem pedir para encarnar junto àquele que ainda não superou as garras do egoísmo, com o objetivo de ajudá-lo a evoluir. Neste caso, a missão pode se tornar árdua, imersa nos eflúvios de ingratidão exalados por um filho, um amigo ou um funcionário. [1, No. 572]

Alguns respondem à ingratidão com frieza, afastando-se de outros na tentativa de se proteger. Mas, na verdade, acabam participando de sentimentos egoístas, trocando a caridade que poderiam praticar, ainda que em forma de prece, pelo isolamento.  [1, No. 938]

Seja em expiação ou em missão, devemos sempre recorrer à espiritualidade de luz para nos fortalecer diante de situações desoladoras como estas.

E jamais deixar de cuidar, prestar auxílio e orar pelo ingrato, pois ele será o primeiro a expiar pela consequência de seus atos.

Devemos agir como a mãe de Dorinha: nunca desistir. E, se nossa voz não ecoa, que nossas emanações mentais em preces de amor possam envolver aqueles que ainda estão afastados da luz.

Márcio Martins da Silva Costa

Referência:
[1]    A. Kardec, O Livro dos Espíritos, 93a. Brasília (DF): Federação Espírita Brasileira, 2013.

Veja também

Ver mais
15.03.2025

A Parábola dos Talentos

Alexandre Bulhões irá proferir sobre “A Parábola dos Talentos.” Dia 18 de Outubro (Segunda-feira) às 20h Realização: UECC – União Espírita Carlos Chagas: https://www.youtube.com/watch?v=tZD30PNi9cM
15.03.2025

Vida abundante

Quando criança, conta o escritor Ardis Whitman, vivia numa aldeia da Nova Escócia, no Canadá. Certa feita uma senhora, mãe de família, morreu. O marido, alcoólatra irresponsável, cuidava pessimamente dos…
15.03.2025

Reformas sociais

O assunto surgiu na reunião de estudos. Pa­ra a edificação de uma sociedade justa, não seria razoável a participação em movimentos que defen­dem uma mudança nas estruturas sociais? Várias opiniões…
Abrir bate-papo
Precisa de ajuda?
Olá! Como podemos ajudá-lo(a)?