
O mundo nas costas
Era uma criança curiosa e cheia de energia, como, geralmente, as crianças são. Álvaro era o seu nome. Sua mãe, quarentona, mulher bela e sorridente, exibindo, quase sempre, a brancura dos dentes, fez uma festa daquelas, de arromba, como costumamos dizer; afinal, era quase Ano Novo e as suas largas posses assim permitiam; bem, mas além da passagem de ano, havia outro motivo tão significativo quanto: o aniversário de seu amado primogênito.
Jane possuía uma certa fixação com datas, ou melhor, décadas. Deixe-me explicar melhor – todo aniversário, completado, de dez em dez anos, merecia, por parte dela, uma atenção especial; era sacrossanto, e como tudo o que é sagrado, era digno de um devotamento, de um zelo especial… ela herdara isso da avó, já contada entre os vivos, do além-túmulo. Então, ficou decidido que comemorariam duas vezes: esta, só com a família e outra, com os seus amiguinhos, ao retornar às aulas.
Cantaram os parabéns e, após o bolo, Álvaro sentou-se com Toninho, seu primo preferido, num pedacinho de chão do jardim de sua casa. Toninho era dois anos mais velho e já sonhava em ser biólogo. Ainda faltavam alguns minutos para a “contagem regressiva” e então, poderia, para a sua alegria, desembrulhar a sua pilha de presentes. “– Como era bom ser rico!” – pensava ele, quando era cercado por mimos e provava, lambendo os beiços, suas comidas prediletas.
Sentado de qualquer jeito, esquecido da boa postura, amontoou entre as pernas um montinho de presentes. Eufórico, passou a rasgar, com a ajuda de Toninho, os papéis, indiferente às embalagens coloridas e aos grandes laços. Um, dois, três, quatro… seis… cansados, pararam. Foi quando, num relance de vista, Toninho fixou os olhos arregalados numa pequena, mas extensa trilha, bem pertinho dos dois… ah, para que!
– Álvaro, veja! – alertou o garoto, entusiasmado.
– O que, Toninho? – indagou, Álvaro, curioso… sempre curioso.
– Aqui! – apontou.
– “Que que” tem, primo?
– As formigas!
– E daí? São só formigas. Você e esses bichos! – retrucou, Álvaro, dando risada.
– Eu sei que são formigas, mas não são “apenas” insetos.
– “Num tô intendendo” nada, Toninho.
– Chegue mais, vou te mostrar.
– Ah não, tô cansado e já já vão chamar a gente.
– Álvaro, deixa de preguiça, moleque, vem cá!
– Tá bom, vai.
Álvaro se achegou ao primo, que estava deitado no chão, óculos na ponta do nariz, a seguir os insetinhos. Imitou o primo e, por um instante, ficaram os dois, observando, em silêncio, as diminutas formigas enfileiradas, em “fila indiana”, como se fala, sem se dispersarem – pareciam correr, todas num mesmo ritmo; umas carregavam folhas; outras, migalhas de comida e outras ainda, gravetos.
– Como tudo isso é lindo! Não acha, Álvaro?
– Lindo eu “num”, sei, primo!
– Como não é lindo?! – disse, indignado.
– Sei lá, Toninho – respondeu, dando de ombros.
– A natureza é perfeita, meu primo. Deus criou a todos e mesmo essas formiguinhas, têm, de certa forma, uma inteligência.
– Ai, primo, só você! Tá falando que as formigas são inteligentes como a gente?
– Não, né! Eu tô tentando te dizer, que elas sabem muito bem o que estão fazendo. Olha só para aquela lá!
Então, Álvaro notou que, a tal formiga havia se desgarrado do bando, e perdida, confusa, seguia, de um lado para o outro. Percebeu também, que ela carregava uma folha, bem maior do que o seu corpo. Aquilo, de fato, lhe causou um certo espanto. Foi então, que o menininho rico, despreocupado com tudo o que não lhe dizia respeito, pela primeira vez, se interessou pelo que via, e num ‘clic’ mental, como num passe de mágicas, parecia ter despertado para a natureza.
– Toninho, que legal! Como ela consegue levar uma folha maior que ela?
– Ah, Álvaro, acho que a formiga mãe deve ter ensinado.
– É, como os nossos pais.
– Isso, só que na natureza, todos aprendem para ficarem vivos.
– É mesmo, nunca percebi, nunca liguei pra isso.
Novo silêncio. As formigas prosseguiam, na santa procissão de cada dia e aquela, que se perdera das companheiras, acabou conseguindo seguir a última da fila. Os meninos ficaram felizes, principalmente Álvaro. Toninho fez nova observação ao primo:
– Você viu só, a formiguinha perdida voltou para a família e para os seus amigos.
– É, tô contente com ela! Olha, Toninho, ela tá carregando outra folha, duas!
– Ahhhh agora entendi porque ela deixou, um pouquinho, a fila!
– Por que?
– Porque ela foi buscar mais comida! Ela foi procurar e fez um esforço danado para levar as duas folhas! Por essas e outras, é que eu acho que os bichos gostam mais dos outros do que gente de gente.
Álvaro pensou, do seu jeitinho, em sua inocência. Esboçou um sorrisinho e disse:
– Ela carregou o mundo nas costas!
– É, primo, arriscou até se perder pra sempre e morrer sozinha.
– Eu também cuidaria da minha família, Toninho. – disse, emocionado.
– Eu também, Álvaro, mas a família é fácil, o difícil é se arriscar pelos outros. – respondeu, cabisbaixo.
– É mesmo. Sabe de uma coisa, primo?
– Fala, Álvaro.
– A partir de hoje, eu também quero carregar o mundo nas costas!
Antes que Toninho respondesse, Jane gritou, chamando os meninos.
– Está na hora, crianças! Venham!
– 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1
– FELIZ ANO NOVO!
E o coro de vozes, encerrou o ano, abrindo o novo, com chave de ouro, no coração de Álvaro.
* * *
“Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, a perderá, mas quem perder a vida por minha causa e pelo evangelho a salvará.” – Jesus.
“Fora da caridade não há salvação” – Allan Kardec.
Sylvinha Gonçalves
Nota do editor:
Imagem ilustrativa e em destaque disponível em <https://www.fazfacil.com.br/wp-content/uploads/2012/03/20180406-formigas-cortadeiras-exib.jpg>. Acesso em: 26MAI2020.
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